"Que a saudade é o pior tormento / É pior do que o esquecimento/...
Que a saudade é o revés de um parto / A saudade é arrumar o quarto/
Do fillho que já morreu/ ..." ( Pedaço de Mim - Chico Buarque)
Nada parece servir de consolo aos pais que perderam um filho; não há como substituir a pessoa que se foi por uma outra. Mesmo sendo difícil medir uma dor, pode-se dizer que o falecimento de um filho é a Grande Dor que um ser humano pode sentir. O chão sob os pés desaparece, o céu escurece, o coração é mutilado e sangra; e a mente fica perturbada pelo caos do acontecimento.É devastador!
Se os pais sentem que perder um filho é a presença do inferno na Terra, é verdade. Mas dizer que o céu, ainda assim, coexiste com este inferno pessoal, também é verdade.Devem, pois, os pais feridos procurarem a sua conexão com este céu na terra porque a vida é um todo indivísivel independente do tamanho da tragédia. A vida não tem fim, o adeus de quem vai é aparente. O amor também não tem fim, quem se foi continua nos amando e desejando ser amado por nós.
Morrer é passar para o lado de lá; acreditar que o falecido está de todo morto, e sem nenhuma relação com os seus aqui, é matá-lo duas vezes.Quem morre continua entre nós e quem se revolta com a perda obstrui os caminhos para sentir esta nova relação com quem se foi. Felizmente, são várias as formas de uma nova relação com quem já fez a Grande Viagem e cada um deve buscar a sua.
Inúmeras também são as formas de bloquear este novo relacionamento com os que se foram, eis algumas:
* Afastar-se emocionalmente dos outros e da vida
* Guardar uma mágoa, resssentimento e rancor dentro de si
* Acreditar que de alguma forma tem de consertar o que aconteceu
* Acreditar que de alguma forma devia ou podia salvar o filho
* Crer que somente a justiça dos homens dará paz a você e a quem se foi
* Guardar a dor dentro de si sem partilha com os que moram com você, com amigos ou pessoas compreensivas
* Acusar, responsabilizar e punir sempre e sempre alguém
* Vingança e luto persistente
A morte nos impõe ao difícil exercício do sutil, do subjetivo e do nosso emocional apesar da vida diária nos arremessar quase sempre para o concreto, o pragmático e o racional.Mas é através do viver diário com mais atenção e percepção ao delicado, ao sutil e ao sensível que a conexão entre estes dois mundos,o de cá e o de lá, torna-se mais possível.Eis algumas formas de relacionamentos com quem fez a Grande Viagem:
* Sonhos
* De repente sentir a vontade de comer o prato predileto do filho
* Lembranças súbitas dos momentos de lazer dele, do sorriso, de um hábito e um jeito de ser só dele...
* A vontade de ouvir a música que ele tanto gostava
* A lembrança de sua presença, de seu rosto e momentos de sua existência...
Quando algumas memórias assim nos invadem ou algum acontecimento mágico nos toca delicadamente no cotidiano, é sinal de que nosso coração e mente tocaram na linha entre os dois mundos e ali, naquele breve instante, o amor e a vida dos que se foram com os que estão aqui se tocam e reecontram.Acredito, sinceramente, que os nossos falecidos estão bem perto de nós e, sem a nossa intenção racional ou nossa provocação , este novo relacionamento, sem beijos e abraços, se dá nestes momentos.
Todo aquele que nasce um dia precisará partir, se não for pelo motivo ocorrido será por um outro mas partirá. Afligir a mente e o espírito porque o motivo do óbito foi estúpido, violento, inaceitável, absurdo ou desnecessário é atribuir a hora da Grande Viagem um controle que não temos ou apenas torná-la relativamente aceitável se for fruto de uma ocorrência explicável ou aceita pela razão.Falecer por avançada idade ou nascimento prematuro, doença incurável ou curável, assassinato ou acidente tem importância para o nosso ego e nosso mundo material, para o nosso espirito e a Paz que provém dele tem importância o que iremos fazer com a nossa mente, o corpo, a emoção e nossas ações com o ocorrido.É o que fazemos com o que nos ocorre que é da nossa conta e irá determinar nossa força ou fraqueza, nossa superação ou não.
A morte apenas nos separa de dimensões de mundos, a maioria dos filhos que se foram estão melhores do que nunca, torcem de onde estão para que seus pais, irmãos e avós sintam-se inteiros e dentro da vida que ainda precisam experimentar e não se sintam reprimidos e culpados de serem felizes novamente, de rirem novamente e sonhar com tempos melhores. Não morremos, mudamos a forma e o local de viver, no entanto se fazemos dos acontecimentos naturais, o nascer e o morrer e tudo que há no intervalo destes dois acontecimentos um livro que só pode ser escrito por nós com acontecimentos do nosso jeito, acabamos de inventar a morte de Deus e, esta é, a pior e mais perigosa das invenções.
Dra. Rosângela Ribeiro